Uma ida a um salão de cabeleireiro/a é um encontro sagrado com a ciência do senso comum. Sem os formalismos e as friezas de outros laboratórios sociais neste apregoam-se certezas sobre quase tudo, disseca-se ao detalhe os roteiros e as preferências das celebridades, murmuram-se críticas ao estado do país, choram-se as mágoas, soltam-se os risos contidos: fala-se da vida. Da sonhada, da real, da ficcionada, mas da vida. Ou não se fala...ouve-se a vida.
No último destes meus encontros sagrados (não tenho muitos, apesar de apreciar imensamente a sua riqueza) assisti ao desenvolver de uma conversa fascinante. Dizia-se em voz alta que tinha estado no salão horas antes um dr. fulano de tal, negro, a fazer uma marcação. Exigia ele não ser atendido por brasileiras ou africanas ou por qualquer outra nacionalidade imigrante que pudesse laborar por aquelas bandas. "Racista!": exclamou a cabeleireira brasileira que me atendia...
Mas a conversa prosseguiu sem que esta exclamação tivesse operado qualquer efeito em quem contava a história ou em quem assistia a ela.
A indignação de quem estava presente voltava-se para o facto do senhor se ter apresentado como dr., seguindo-se toda uma teorização sobre a personalidade de quem nos cheques usa tal referência. "Doutores? Para mim os doutores são os médicos!", dizia uma voz irritada! "Doutores são os professores doutores, esses sim!", exclamava outra voz igualmente enervada! "E sabes, as mulheres são piores nestas coisas...eu sou um bocado feminista, mas tenho que ser justa!", retorquiu a primeira.
Já tinha resistido ao impulso de reagir aquando da exclamação inicial sobre o racismo. Resisti também ao ímpeto de perguntar o que era ser um bocado feminista.
Vim embora a perguntar-me se não seria de se começar a colocar à entrada dos estabelecimentos comerciais uma placa com a seguinte inscrição: "Proibida a entrada a racistas e a xenófobos/as", em substituição das que proibem a entrada dos animais que não incomodam nem fazem mal a ninguém!
Há quem tenha a ilusão de que os títulos enobrecem quem os carrega. Mas essa ilusão é, regra geral, um mero sintoma de prosápia aguda, inofensivo quando isolado. A mim preocupam-me os sintomas de outras ilusões que fazem com que alguém se julgue no direito de se negar a ser atendido por imigrantes. Preocupam-me ainda mais os sintomas da indiferença que acompanham quem, impávida e serenamente, apenas se indigna com o inofensivo.
quinta-feira, setembro 06, 2007
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1 comentário:
"Ser capaz de respeito é hoje em dia quase tão raro como ser digno de respeito" (Joseph Joubert).
Por estas e por outras é que não posso estar mais de acordo com esta afirmação.
Um grande abraço.
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