Lisboa, 09 Out (Lusa)
Nenhum ser humano é exclusivamente feminino ou masculino mas, socialmente, estar à margem do binarismo sexual homem-mulher é como "habitar a terra de ninguém", afirma Ana Sofia Neves, investigadora no Instituto Superior da Maia.Em declarações à agência Lusa sobre a condição da atleta sul-africana Caster Semenya, que será pseudo-hermafrodita, Sofia Neves, doutorada em Psicologia Social, sublinhou que ninguém "é estritamente homem ou estritamente mulher, mesmo que as nossas características bio-genéticas pareçam querer atestar essa ideia do sexo puro".Numa linha de pensamento essencialista, o conceito de "sexo" refere-se a "um conjunto de atributos bio-genéticos que diferencia os machos das fêmeas" mas existe outra noção importante neste quadro, a de "género", que diz respeito a "um leque alargado de representações, expectativas e papéis sociais associado a cada um dos sexos biológicos", explicou.Para a especialista, o sexo é, nesta óptica, "o produto da natureza" e o género "o produto da cultura" - dois aspectos que podem também ser vistos como "categorias sociais e discursivas" constitutivas do corpo e da identidade.Nesse caso, "a ideia de sexo natural passa a ser, em si mesma, uma ideia contestada, já que a instauração da diferença sexual binária [homem/mulher] é apenas uma forma de categorização social, de entre outras possíveis", salientou à Lusa, acrescentando que a categorização poderia ser feita com base noutros referenciais que não os órgãos sexuais.Na sequência destas noções, a docente e investigadora na área das questões de género considera que a referência a "dois ou quatro, ou sete, ou onze sexos é redutora" pois "a tipologia das categorias sexuais é ilimitada".Focando-se no caso concreto de Caster Semenya, cuja condição sexual começou ser investigada na sequência dos resultados obtidos nos mundiais de atletismo de Berlim, Sofia Neves lamentou a forma como o assunto tem sido abordado."O que começou por estar em evidência foi o facto de uma jovem atleta, alegadamente atípica na aparência e nos comportamentos (não feminina portanto), obter, nas provas em que participa, resultados igualmente atípicos para uma 'simples' mulher", assinalou.E a primeira questão foi tentar perceber "se se tratava de um homem a fazer-se passar por uma mulher (já que dificilmente uma mulher 'comum' seria capaz de tais feitos desportivos) ou se, por outro lado, se tratava de uma 'super-mulher' (uma mulher de excepção que, por razões desconhecidas mas provavelmente estranhas, se evidencia das outras mulheres)", reforçou.Para Sofia Neves, que está a organizar um seminário sobre Género e Ciências Sociais, previsto para 4 e 5 de Dezembro, até agora os testes efectuados a Caster Semenya vão apenas no sentido de "apurar a 'verdadeira condição sexual' da jovem a partir de meros indicadores bio-genéticos"."Não me parece que, em algum momento, o assunto tivesse sido tratado à luz das questões da identidade desta jovem, tal qual ela a percepciona", lamenta.Assim, "ter uma dupla condição sexual ou ter uma 'anomalia sexual' (como habitualmente o hermafroditismo é designado) serve como um atestado de despersonalização, já que a identidade passa - para quem a avalia de fora - a ser um conceito aparentemente difuso ou improvável", acrescenta.Ora, "não se sendo unicamente homem e não se sendo unicamente mulher, então questiona-se o lugar de pertença das pessoas", acabando o crivo social por "mostrar a estas pessoas que elas pertencem a um não-lugar, como se estar à margem do binarismo sexual (homem-mulher) significasse habitar a terra de ninguém", conclui.O sexólogo Francisco Allen Gomes complementa que é necessário tacto na forma como se designam as pessoas num estado de intersexualidade, pois "com muita facilidade se estigmatiza" e "as palavras ferem".Ex-chefe de serviço de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde foi responsável pela consulta de Sexologia até à sua aposentação, em 2001, Allen Gomes questiona a forma como a condição de Caster Semenya está a ser avaliada e considera excessiva a exposição pública da jovem."Vão analisar a atleta para saber se é um homem ou uma mulher? Ela pode ser um XY e ter uma identidade feminina, como pode ser um XX, ter havido uma masculinização por qualquer motivo, e ter uma identidade feminina", declarou."Imaginemos que essa rapariga - porque é uma rapariga - nunca soube da sua situação… Ver, de repente, a sua identidade posta em causa é uma coisa brutalmente traumática, violentíssima", sublinhou.
HSF.Lusa
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1 comentário:
Olá Sofia, obrigada pelo esclarecimento sobre essa questão de gênero, com dificuldades tão explícitas e ao mesmo tempo uma questão tão contida e mascarada em nossa sociedade contemporânea. Patrícia - São Carlos - Brasil
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